sexta-feira, 15 de junho de 2007

O Ingênuo do Samba

Quem diria que aquele escurinho, filho do Eduardo Marceneiro (o que tocava clarinete e caixa na banda da Guarda Nacional) e da Dona Celestina, iria se tornar um artista tão inspirado? Ninguém! Acho que compor sambas e tocar cavaquinho não seria improvável, sendo filho de um pai músico. Mas isso é normal (ou era), pois no morro, qualquer criança toca um pandeiro, um surdo e um cavaquinho, acompanha o canto de um passarinho sem errar o compasso. Afinal, o que é esperado para quem nasce no alto? Crescer e se destacar pelos estudos? (se infelizmente hoje há dificuldades para isso acontecer, imaginem só naquela época?) Bem, pelo que lembro, ele foi expulso do Colégio Benjamim Constant, do Colégio de padres de Sant’Ana e do Externato Sousa Aguiar. Com isso chegou a concluir apenas o quarto ano primário. Houve outra tentativa que poderia torná-lo mais um "escurinho direitinho", o trabalho (Heitor seguiu o ofício do pai tornando-se marceneiro, carpinteiro e um ótimo polidor de madeira. Certa fase da vida chegou também a ser tipógrafo e sapateiro.). Embora trabalhasse desde os 7 anos, aos 13 foi preso por vadiagem, passando dois meses na Colônia Correcional da Ilha Grande (osso duro de roer). Digo a vocês, em sua vida aprendeu mais com sua avó, com o pai e com a malandragem das ruas do que com professores. Relembrando esses fatos, percebo que hoje eu poderia contar uma história de vida totalmente diferente se não houvesse a arte correndo dentro daquelas veias. Já até perdi as contas dos carnavais em que desci o morro cantando: “Um pierrô apaixonado,/que vivia só cantando,/ por causa de uma colombina,/acabou chorando, acabou chorando”. Parceiro de Noel Rosa em "Pierrô Apaixonado" e Sinhô (com quem teve uns atritos autorais), integrou-se perfeitamente a boêmia da Lapa no início do século XX. Participou ativamente na formação de escolas de samba, tais como, Deixa Falar, De Mim Ninguém se Lembra, Portela e Mangueira, todas em 1928. Em meados de 1931 ingressou no rádio apresentando-se com um coro feminino, conjunto intitulado Heitor e Sua Gente. Com isso, teve muitos dos seus sambas gravados pelas maiores vozes do rádio como Francisco Alves e Mário Reis. Casou-se no mesmo ano com Iliete, teve filhos. Viúvo, casou-se em 1940 com Nativa. Também teve filhos, mas o que não se imaginaria é que ele tinha mais uma carta escondida na manga. Sem abandonar, porém, o samba, começou a pintar, como autodidata, em 1937 (após a morte de Iliete), e tinha como o simples objetivo “enfeitar as paredes”. Enfenitando paredes, ele ganhou destaque ao participar da primeira Bienal Internacional de São Paulo, em 1951, sendo premiado por um júri que incluía o célebre crítico Herbert Read, um dos nomes mais respeitados da historiografia da arte mundial. Participou ainda das Bienais paulistas de 1953 e 1961, além de realizar mostras coletivas em quase todas as capitais sul-americanas, Paris, Moscou, outras cidades européias e até no Senegal. Suas temáticas eram justamente cenas do morro, sambistas, pastoras e outras cenas tipicamente cariocas (brasileiras), exatamente tudo o que nós viviamos e sentiamos. A principal característica pictórica (falei bonito!) de Heitor dos Prazeres era a capacidade de revelar minúcias e detalhes do universo da samba, realidade que ele retratava com extrema facilidade por conhecer muito bem. Três particularidades logo se destacam nos mais variados trabalhos do Heitor: a importância que dá à figura humana, os rostos colocados de perfil, como ocorre na arte egípcia, e a forte sugestão de movimento. Quanto a esse terceiro fator, vale salientar que homens e mulheres são geralmente retratados quase na ponta dos pés, como se estivessem sambando ou caminhando rapidamente. Esse fator gera imagens de grande dinamismo, em que aparecem geralmente instrumentos musicais ou pessoas com corpos contorcidos em movimentos muitas vezes sensuais. Arte de Heitor dos Prazeres, como diriam os franceses, é a típica arte "ingênua" dos pintores primitivistas. Uma arte em que atmosfera é de júblilo, não trata de preconceitos sociais ou raciais, também evitando trazer à tona fatos da realidade que indicassem qualquer sinal de tristeza. Com suas pinturas, Heitor dos Prazeres ingênuamente conferiu um novo status ao povo preto do morro, que só assim pôde ser apresentado de uma forma repleta de beleza. E como era bom ver a elite, encantada com a arte daquele escuro que não era lá muito direitinho. Com o passar do tempo essa arte se valorizou. Hoje aqueles quadros são ícones da Arte Naïf no Brasil. Pinturas que revelam uma sucessão de movimentos harmônicos como numa música. Quadros pintados como se fossem uma das composições dele, que é um grande músico e tem seu nome gravado no cancioneiro popular, que também tem um papel muito importante na consolidação da ingênua arte primitivista nacional, antecipando os tempos da negritude.

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